Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(272)

Mais que uma vez, ao passear


L. do D.

Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da tarde, me tem batido na alma, com uma violencia subita e estonteante, a extranhissima presença da organização das coisas. Não são bem as coisas naturaes que tanto me affectam, que tam poderosamente me trazem esta sensação: são antes os arruamentos, os lettreiros, as pessoas vestidas e fallando, os empregos, os jornaes, a intelligencia de tudo. Ou, antes, é o facto de que existem arruamentos, lettreiros, empregos, homens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir caminhos.

Reparo no homem directamente, e vejo que é tam inconsciente como um cão ou um gato; falla por uma inconsciencia de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma inconsciencia de outra ordem, absolutamente inferior á que empregam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então, tanto ou mais que da existencia de organismos, tanto ou mais que da existencia de leis physicas rigidas e intellectuaes, se me revela por uma luz evidente a intelligencia que cria e impregna o mundo.

Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha phrase de não sei que escholastico: Deus est anima brutorum, Deus é a alma dos brutos. Assim entendeu o auctor da phrase, que é maravilhosa, explicar a certeza com que o instincto guia os animaes inferiores, em que se não divisa intelligencia, ou mais que um esboço d'ella. Mas todos somos animaes inferiores — fallar e pensar são apenas novos instinctos, menos seguros que os outros porque novos. E a phrase do escholastico, tam justa em sua belleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.

Nunca comprehendi que quem uma vez considerou este grande facto da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro em que o mesmo Voltaire não descreu. Comprehendo que, attendendo a certos factos apparentemente desviados de um plano (e era preciso saber o plano para saber se são desviados), se attribua a essa intelligencia suprema algum elemento de imperfeição. Isso comprehendo, se bem que o não acceite. Comprehendo ainda que, attendendo ao mal que ha no mundo, se não possa acceitar a bondade infinita d'essa intelligencia creadora. Isso comprehendo, se bem que o não acceite tambem. Mas que se negue a existencia d'essa intelligencia, ou seja, de Deus, é coisa que me parece uma d'aquellas estupidezes que tantas vezes affligem, num ponto da intelligencia, homens que, em todos os outros pontos d'ella, podem ser superiores; como os que erram sempre as sommas, ou, ainda, e pondo já no jogo a intelligencia da sensibilidade, os que não sentem a musica, ou a pintura, ou a poesia.

Não acceito, disse, nem o criterio do relojoeiro imperfeito nem o do relojoeiro sem benevolencia. Não acceito o criterio do relojoeiro imperfeito porque aquelles pormenores do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lapsos ou semrazões, não podem como tal, ser verdadeiramente dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um plano em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão, mas é de ponderar que se ha em tudo uma razão, haverá nisso tambem a mesma razão que ha em tudo. Vemos a razão, porém não o plano; como diremos, então, que certas coisas estão fóra do plano que não sabemos o que é? Assim como um poeta de rhythmos subtis pode intercalar um verso arhythmico para fins rhythmicos, isto é, para o proprio fim de que parece afastar-se, e um critico mais purista do rectilineo que do rhythmo chamará errado esse verso, assim o Creador pode intercalar o que nossa estreita [razão] considera arrythmias no decurso majestoso do seu rhythmo metaphysico.

Nem acceito, disse, o criterio do relojoeiro sem benevolencia. Concordo que é um argumento de mais difficil resposta, mas é-o só apparentemente. Podemos dizer que não sabemos bem o que é o mal, não podendo porisso afirmar se uma coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer descrer na bondade do Creador. Ora o erro essencial d'este argumento parece residir no nosso completo desconhecimento do plano de Deus, e nosso egual desconhecimento do que possa ser, como pessoa intelligente, o Infinito Intellectual. Uma coisa é a existencia do mal, outra a razão d'essa existencia. A distincção é talvez subtil ao ponto de parecer sophistica, mas o certo é que é justa. A existencia do mal não pode ser negada, mas a maldade da existencia do mal pode não ser acceite. Confesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a nossa imperfeição.