Este livro é belo e inútil - Usa (BNP/E3, 1-79v)

Hoje, em um dos devaneios sem proposito | Pedi tam pouco á vida


Pedi tam pouco á vida e esse mesmo pouco
a vida me negou. Uma restia de parte
do sol, um campo proximo, um bocado de socego com
um bocado de pão, não me pesar muito
o conhecer que existo, o não exigir nada
dos outros nem exigirem elles nada de mim.
Isto mesmo me foi negado, como quem nega
a sombra não por falta de boa alma, mas
para não ter que desabotoar o casaco.
quando não tem
paciencia para desabotoar o sobretudo e
tirar o dinheiro da algibeira do sobretudo                
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Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sósinho
como sempre tenho sido, sósinho como sempre
serei. E penso se na minha voz, appa-
rentemente tam pouca cousa, não incarna
a substancia de milhares de vozes, a fome
de dizerem-se de milhares de vidas, a paciencia
de milhões de almas, submissas como a
minha no destino quotidiano, ao sonho inutil,
á esperança sem vestigios.

Nestes momentos meu coração pulsa mais alto
por minha consciencia d'elle. Vivo mais porque vivo maior.
Sinto na minha pessoa uma força religiosa,
uma especie de oração, uma similhança de clamor.

Mas a reacção contra mim desce-me da intelligencia...
Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos
Douradores, sinto-me com somno; olho, sobre
o papel meio escripto, a vida
vã sem beleza e o cigarro barato
que a esquerda extende sobre o mata-
borrão velho gasto. Aqui, eu, neste quarto
a interpelar a vida! a
dizer o que as almas sentem!
a fazer prosa comos os genios e os celebres! Aqui,
eu, assim!...