Café - Usa (BNP/E3, 1-79)

Hoje, em um dos devaneios sem proposito | Pedi tam pouco á vida


L do D

Hoje, num dos devaneios sem proposito nem digni-
dade que constituem grande parte da substancia spiri-
tual da minha vida, imaginei-me liberto para sempre da
Rua dos Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros
Moreira, do caixa Borges, dos empregados todos, do moço,
do garoto e do gato. Senti em sonho a minha liberta-
ção, como se mares do Sul me houvessem aberto ilhas
maravilhosas por descobrir. Seria, então, o repouso,
a arte, a vida intellectual e o cumprimento do meu ser.
Mas, de repente, e no proprio imaginar — que fiz com
o auxilio de um café e aguardente —, uma impressão su-
bita me atacou o sonho: senti que teria pena. Sim, di-
go-o como se o dissesse circumstanciadamente: teria pena.
O patrão Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Bor-
ges, os rapazes todos, o garoto que leva as cartas ao
correio, o moço dos fretes, o gato — tudo isso se tornou
parte da minha vida; não poderia deixar tudo isso sem
chorar, sem comprehender que, por mau que me parecesse,
era parte de mim que ficava com elles todos, era uma
metade e similhança da morte o separar-me d'elles.

Aliás, se amanhã me apartasse d'elles todos, e
despisse este trajo da Rua dos Douradores, a que outra
coisa me chegaria — porque a outra me haveria de che-
gar —, de que outro trajo me vestiria — porque de outro
me haveria de vestir?

Todos temos o patrão Vasques, para uns visivel,
para outros invisivel; para mim chama-se realmente Vas-
ques, e é um homem agradavel, de vez em quando brusco,
interesseiro, mas bom, no fundo justo, com uma justiça
que falta a muitos grandes genios e a muitas maravilhas
humanas da civilização, direita e esquerda. Para outros
será a vaidade, a ansia de maior riqueza, a gloria, a
immortalidade... Prefiro o Vasques meu patrão, que é
mais humano tratavel que tudo isso.

Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o ou-
tro dia um rapaz amigo, socio de uma firma que é pros-
pera por negocios com todo o Estado: você é explorado. Re-
cordei-me que o sou; mas, como na vida temos todos que
ser explorados, pergunto se valerá menos a pena ser
explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade,
pela glória, pelo despeito, pela inveja e ou pelo impossi-
vel. Ha os que Deus mesmo explora, e são prophetas e san-
tos na vacuidade do mundo.

ah, E Recolho-me, como ao lar que os outros teem, á
casa da Rua dos Douradores; achego-me á minha secreta-
ria como a um baluarte contra o mundo. Tenho ternura,
ternura até ás lagrimas, pelos meus livros em que es-
cripturo, pela cadeira em que me sento, pelo tinteiro
de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sergio, que
faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho
amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que a-
mar — ou talvez, tambem, porque nada valha o amor de
uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto


val dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como á visão distante á grande indifferença
das estrellas