Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(294)

Releio, em uma d'estas


L. do D.

Releio, em uma d'estas somnolencias sem somno, em que nos entretemos intelligentemente sem a intelligencia, algumas das paginas que formarão, todas junctas, o meu livro de impressões sem nexo. E d'ellas me sobe, como um cheiro de coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto que, ainda ao dizer que sou sempre differente, disse sempre a mesma coisa; que sou mais analogo a mim mesmo do que quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a alegria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausencia de saldo de mim mesmo, de um equilibrio involuntario que me desola e enfraquece.

Tudo, quanto escrevi, é pardo. Dir-se-hia que a minha vida, ainda a mental, era um dia de chuva lenta, em que tudo é desacontecimento e penumbra, privilegio vazio e razão esquecida. Desolo-me a sêda rota. Desconheço-me a luz e tedio.

Meu exforço humilde, de sequer dizer quem sou, de registrar, como uma machina de nervos, as impressões minimas da minha vida subjectiva e aguda, tudo isso se me esvasiou como um balde em que esbarrassem, e se molhou pela terra como a agua de tudo. Fabriquei-me a tintas falsas, resultei a imperio de trapeira. Meu coração, de quem fiei os grandes acontecimentos da prosa vivida, parece-me hoje, escripto na distancia d'estas paginas relidas com outra alma, uma bomba de quintal de provincia, installada por instincto e manobrada por serviço. Naufraguei sem tormenta num mar onde se pode estar de pé.

E pergunto ao que me resta de consciente nesta serie confusa de intervallos entre coisas que não existem, de que me serviu encher tantas paginas de phrases em que acreditei como minhas, de emoções que senti como pensadas, de bandeiras e pendões de exercitos que são, afinal, papeis collados com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beiraes.

Pergunto ao que me resta de mim a que vem estas paginas inuteis, consagradas ao lixo e ao desvio, perdidas antes de ser entre os papeis rasgados do Destino.

Pergunto, e prosigo. Escrevo a pergunta, embrulho-a em novas phrases, desmeado-a de novas emoções. E amanhã tornarei a escrever, na sequencia do meu livro estupido, as impressões diarias do meu desconvencimento com frio.

Sigam, taes como são. Jogado o dominó, e ganho o jogo, ou perdido, as pedras viram-se para baixo e o jogo findo é negro.