Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(107)

Nos primeiros dias do outomno


L. do D.

Nos primeiros dias do outomno subitamente entrado, quando o escurecer toma uma evidencia de qualquer cousa prematura, e parece que tardámos muito no que fazemos de dia, góso, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta antecipação de não trabalhar que a propria sombra traz comsigo, porisso que é noite e a noite é somno, lares, livramento. Quando as luzes se acendem no escriptorio amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que cessassemos de trabalhar de dia, sinto um comforto absurdo como uma lembrança de outrem, e estou socegado com o que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei dormir.

Somos todos escravos de circumstancias externas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de viella; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciencia intima de dever-se repousar.

Mas com isso o trabalho não se atraza: anima-se. Já não trabalhamos; recreamo-nos com o assumpto a que estamos condemnados. E, de repente, pela folha vasta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das tias antigas alberga, fechada contra o mundo, o chá das dez horas somnolentas, e o candieiro de petroleo da minha infancia perdida brilhando somente sobre a mesa [de] linho, obscurece-me, com a luz, a visão do Moreira, illuminado a uma electricidade negra infinitos para além de mim. Trazem o chá — é a creada mais velha que as tias que o traz com os restos do somno e o mau humor paciente da ternura da velha vassalagem — e eu escrevo sem errar uma verba ou uma somma atravez de todo o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a noites longinquas, impollutas de dever e de mundo, virgens de mysterio e de futuro.

E tam suave é a sensação que me alheia do debito e do credito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser ôco, como se não fôsse mais que a machina de escrever que trago commigo, portatil de mim mesmo aberto. Não me choca a interrupção dos meus sonhos: de tam suaves que são, continuo sonhando-os por traz de fallar, escrever, responder, conversar até. E atravez de tudo o chá perdido finda, e o escriptorio vae fechar... Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cançados do choro que não tiveram, e, numa mixtura de sensações, soffro que ao fechar o escriptorio se me feche o sonho tambem; que no gesto da mão com que cerro o livro encubra o passado irreparavel; que vá para a cama da vida sem somno, sem companhia nem socego, no fluxo e refluxo da minha consciencia misturada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos da saudade e da desolação.