De repente, como se um destino
21/2/1930.
L. do D.
De repente, como se um destino magico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados subitos, ergo a cabeça, da minha vida anonyma, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma especie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Extranho quanto fui do que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metaphysico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas idéas mais claras, e os meus propositos mais logicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos d'elle.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma somma de subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que agi d'elle para fóra, ou de um peso de circumstancias que suppuz ser o ar que respirava. Sou, neste momento de vêr, um solitario subito, que se reconhece desterrado onde se encontrou sempre cidadão. No mais intimo do que pensei não fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcastico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que existi sòmente porque enchi tempo com consciencia e pensamento. E a minha sensação de mim é a de quem accorda depois de um somno cheio de sonhos reaes, ou a de quem é liberto, por um terramoto, da luz pouca do carcere a que se habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condemnação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, d'essa que andou sempre viajando somnolentamente entre o que sente e o que vê.
É tam difficil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quaes são as palavras humanas com que possa definil-o. Não sei se estou com febre, como sinto, se deixei de ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como um viajante que de repente se encontre numa villa extranha sem saber como alli chegou; e occorrem-me esses casos dos que perdem a memoria, e são outros durante muito tempo. Fui outro durante muito tempo — desde a nascença e a consciencia —, e accordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até aqui. Mas a cidade é-me incognita, as ruas novas, e o mal sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me passe a verdade, e eu me restabeleça nullo e ficticio, intelligente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os moveis que me cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um momento, com consciencia, o que os grandes homens são com a vida. Com a Vida? Recordo-lhes os actos e as palavras, e não sei se não foram tambem tentados vencedoramente pelo Demonio da Realidade. Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção da monada intima, da palavra magica da alma. Mas uma luz subita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois já não sei sequer dizer o que fui. E, por fim, tenho somno, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir.