Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(166)

Remoinhos, redemoinhos


                                        25/4/1930.

L. do D.

Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida!
Na grande praça ao centro da cidade, a agua sobriamente
multicolor da gente passa, desvia-se, faz pôças, abre-se em
riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem desatten-
tamente, e construo em mim essa imagem aquea que, melhor que
qualquer outra, e porque pensei que viria chuva, se ajusta
a este incerto movimentos.

Ao escrever esta ultima phrase, que para mim exacta-
mente diz o que define, pensei que seria util pôr no fim
do meu livro, quando o publicar, abaixo das "Errata" umas
"Não-Errata", e dizer: a phrase "a este incerto movimentos",
na pagina tal, é assim mesmo, com as vozes ad-
jectivas no singular e o substantivo no plural. Mas que
tem isto com aquillo em
que estava pensando? Nada, e porisso me deixo pensal-o.

Á roda dos meios da praça, como caixas de phosphoros
moveis, grandes e amarellas, em que uma creança espetasse
um phosphoro queimado inclinado, para fazer de mau mastro, os
carros electricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam a
ferro alto. Á roda da estatua central as pombas são miga-
lhas pretas que se mexem, como se lhes désse um vento
espalhador. Dão passinhos, gordas sobre pés pequenos.


                                        (2)

Vista de perto, toda a gente é monotonamente diversa.
Dizia Vieira que Frei Luiz de Sousa escrevia "o commum com
singularidade". Esta gente é singular com communidade, ás a-
vessas do estylo da Vida do Arcebispo. Tudo isto me faz pe-
na, sendo-me todavia indifferente. Vim parar aqui sem razão,
como tudo na vida.

Do lado do oriente, entrevista, a cidade ergue-se quasi
a prumo falso, assalta estaticamente o Castello. O sol pal-
lido molha de um aureolar vago essa mole subita de casas,
que para aqui o occulta. O céu é de um azul humidamente es-
branquiçado. A chuva de hontem talvez se repita hoje, mas
mais branda. O vento parece leste, talvez por que aqui mesmo, de
repente, cheira vagamente ao maduro e verde do
mercado proximo occulto. Do lado oriental da praça ha
mais forasteiros que do outro. Como descargas
alcatifadas, as portas onduladas descem para cima; não sei
porquê, é assim a phrase que me transmitte aquelle som.
É talvez porque fazem mais
esse som ao descer,
porém agora
sobem.
Tudo se
explica.

De repente, estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto
de um telhado espiritual mental. Estou só no mundo. Ver é estar dis-
tante. Ver claro é parar. Analysar é ser extrangeiro. Toda
a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar á minha volta.
Sinto-me tam isolado que sinto roço a distancia entre mim e
o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatoria mal accesa, que a-
travessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem
sombras que me cercam — só sombras, filhas dos moveis hir- das coisas mortas
tos e da luz que me acompanha. Ellas me rondam, aqui ao sol, mas são gente.

E são sombras, sombras...