Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(174)

Quantas vezes, presa da superficie


                                            12/4/1930.

L. do D.

Quantas vezes, presa da superficie e do bruxedo, me
sinto homem. Então convivo com alegria e existo com clare-
za. Sobrenado. E é-me agradavel receber o ordenado e ir pa-
ra casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer
cousa organica. Se medito, não penso. Nesses dias gos-
to muito dos jardins.

Não sei que cousa estranha e pobre existe na substan-
cia intima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem
quando me não sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da ci-
vilização — uma modificação anonyma da Natureza. As plan-
tas estão alli, mas ha ruas-ruas. Crescem arvores,
mas ha bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento vira-
do para os quatro lados da cidade, alli largo, os bancos
são maiores e teem quasi sempre uma abundancia de pouca gente.

Não odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio,
porém, o emprego publico das flores. Se os canteiros fossem
em parques fechados, se as arvores crescessem sobre recan-
tos feudaes, se os bancos não tivessem alguem,
haveria com que consolar-me na contemplação inutil dos jar-
dins. Assim, na cidade, regrados mas uteis, os
jardins são para mim como gaiolas, em que as espon-
taneidades coloridas das arvores e das flores não teem senão
espaço para o não ter, logar para d'elle não sahir, e a bel-
leza propria sem a vida que pertence a ella.

Mas ha dias em que esta é a paisagem que me pertence,
e em que entro como um figurante numa tragedia comica. Nes-
ses dias estou errado, mas, pelo menos em certo modo, sou
mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente casa,
lar, a onde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado para
um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.

Mas a illusão não dura muito, tanto porque não dura
como porque a noite vem. E a côr das flores, a sombra das
arvores, o alinhamento de ruas e canteiros, tudo se esbate
e encolhe recolhe. Por cima do erro e de eu estar
homem
abre-se de repente, como se a luz do dia fosse um
panno de theatro que se escondesse para mim, o grande scenario das es-
trellas. E então esqueço com os olhos a plateia
amorpha e aguardo os primeiros actores com um sobresalto
de creança no circo.

Estou liberto e perdido.

Sinto. Esfrio febre. Sou eu.