Leitura Crítica 1 - Usa Jacinto do Prado Coelho(153)

O socio capitalista aqui da firma


L. do D.

5-4-1930

O socio capitalista aqui da firma, sempre doente em parte incerta, quiz, não sei por que capricho de que intervallo de doença, ter um retrato do conjuncto do pessoal do escriptorio. E assim, antes de hontem, alinhámos todos, por indicação do photographo alegre, contra a barreira branca suja que divide, com madeira fragil, o escriptorio geral do gabinete do patrão Vasques. Ao centro o mesmo Vasques; nas duas alas, numa distribuição primeiro definida, depois indefinida, de categorias, as outras almas humanas que aqui se reunem em corpo todos os dias para pequenos fins cujo ultimo intuito só o segredo dos Deuses conhece.

Hoje, quando cheguei ao escriptorio, um pouco tarde, e, em verdade, esquecido já do acontecimento estatico da photographia duas vezes tirada, encontrei o Moreira, inesperadamente matutino, e um dos caixeiros de praça, debruçados rebuçadamente sobre umas coisas ennegrecidas, que reconheci logo, em sobresálto, como as primeiras provas das photographias. Eram, afinal, duas só de uma, d'aquella que ficára melhor.

Soffri a verdade ao ver-me alli, porque, como é de suppor, foi a mim mesmo que primeiro busquei. Nunca tive uma idéa nobre da minha presença physica, mas nunca a senti tam nulla como em comparação com as outras caras, tam minhas conhecidas, naquelle alinhamento de quotidianos. Pareço um jesuita fruste. A minha cara magra e inexpressiva nem tem intelligencia, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que fôr, que a alce da maré morta das outras caras. Da maré morta, não. Ha alli rostos verdadeiramente expressivos. O patrão Vasques está tal qual é — o largo rosto prazenteiro e duro, o olhar firme, o bigode rigido completando. A energia, a esperteza, do homem — afinal tam banaes, e tantas vezes repetidas por tantos milhares de homens em todo o mundo — são todavia escriptas naquella photograhia como num passaporte psychologico. Os dois caixeiros viajantes estão admiraveis; o caixeiro de praça está bem, mas ficou quasi por traz de um hombro do Moreira. E o Moreira! O meu chefe Moreira, essencia da monotonia e da continuidade, está muito mais gente do que eu! Até o moço — reparo sem poder reprimir um sentimento que busco suppor que não é inveja — tem uma certeza de cara, uma expressão directa que dista /sorrisos/ do meu apagamento nullo de esphynge de papelaria.

O que quere isto dizer? Que verdade é esta que uma pellicula não erra? Que certeza é esta que uma lente fria documenta? Quem sou, para que seja assim? Comtudo... E o insulto do conjuncto?

— " Você ficou muito bem ", diz de repente o Moreira. E depois, virando-se para o caixeiro de praça, "É mesmo a carinha dele, hein?" E o caixeiro de praça concordou com uma alegria amiga que atirou para o lixo.