Leitura Crítica 2 - Usa (BNP/E3, 4-85)

Esthetica do Artificio


L. do D.
Esthetica do Artificio

A vida prejudica a expressão
da vida. Se eu vivesse um
grande amôr nunca o po-
deria contar sentir descrever.

Eu proprio não sei se este
eu, que vos exponho, por estas
colleantes paginas fora, realmente
existe ou é apenas um conceito
esthetico e falso que fiz de
mim-proprio. Sim, é assim. Vivo-me estheti-
camente em outro. Esculpi
a minha vida como a uma
estatua de materia alheia
a meu ser. Ás vezes não me
reconheço, tão exterior me puz
a mim, e tão de modo puramente ar-
tistico empreguei a minha
consciencia de mim proprio.
Quem sou por detraz d'esta
irrealidade? Não sei. Devo ser
alguem. E se não busco viver,

agir, sentir é — crede-me bem — para não perturbar as linhas
feitas da minha personalidade supposta. Quero ser tal qual quiz ser e não


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sou. Se eu vivesse destruir-me-hia.
Quero ser uma obra de arte, da
alma pelo menos, já que do corpo não
posso ser. Porisso me esculpi em
calma e alheiamento e me puz
em estufa, longe dos ares frescos e
das luzes francas — onde a minha
artificialidade, flôr absurda exotica, floresça
em affastada belleza.

                ***

Penso ás vezes no bello que seria
poder, unificando os meus sonhos, crear-me
uma vida continua, succedendo-se,
dentro do decorrer de dias inteiros,
com convivios imaginarios com gente
criada, e ir vivendo, soffrendo,
gosando essa vida falsa. Alli me
aconteceriam desgraças; grandes
alegrias alli cahiriam sobre mim. E
nada d'isso seria real. Mas teria
tudo uma logica soberba, sua; seria
tudo segundo um rhythmo de
voluptuosa falsidade, passando tudo
n'uma cidade feita da minha alma, per-
dida até caes á beira
de uma bahia calma, muito longe
dentro de mim, muito longe,... E tudo
nitido, inevitavel, como na vida
exterior, menos esthetica belleza distante do Sol.