Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(244)

Em todos os logares da vida


L. do D.

18-9-1917

Em todos os logares da vida, em todas as situações e convivencias, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um extranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguem de fóra. Não digo que o fui, uma só vez sequér, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma attitude expontanea da media dos temperamentos alheios.

Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com sympathia. A pouquissimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou fallado alto ou /de terça/. Mas a sympathia com que sempre me trataram, foi sempre /isenta/ (exempta) de affeição. Para os mais naturalmente intimos fui sempre um hospede, que, por hospede é bem tratado, mas sempre com a attenção devida ao estranho, e a falta de affeição merecida pelo intruso.

Não duvido que tudo isto, da attitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa /intrinseca/ ao meu proprio temperamento. Sou porventura de uma frieza communicativa, que involuntariamente obrigo os outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir.

Travo, por indole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as sympathias dos outros. Mas as affeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi cousa que sempre me pareceu impossivel, como um extranho tratar-me por tu.

Não sei se soffra com isto, se o acceito como um destino indifferente, em que não há nem que soffrer nem que /acceitar/.

Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indifferentes. Orphão da Fortuna, tenho, como todos os orphãos, a necessidade de ser o objecto da affeição de alguem. Passei sempre fome da realização d'essa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inutil [?] que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.

Com isto ou sem isto a vida doe-me.

Os outros teem quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequér pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.

Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não affeição. Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si proprio esse respeito começado [por] quem o sente de modo que nunca chega a respeitar-me devéras.

Julgo às vezes que góso soffrer. Mas na verdade eu preferiria outra cousa.

Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltam.

Outros, menos intelligentes que eu, são mais fortes.

Talham melhor a sua vida entre gente; administram, mais habilmente, a sua intelligencia. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.

Se um dia amasse, não seria amado.

Basta eu querer uma cousa para ella morrer. O meu destino, porém, não tem a fôrça de ser mortal para qualquer cousa. Tem a fraqueza de ser mortal nas cousas para mim.