Café - Usa (BNP/E3, 3-22r)

Nos primeiros dias do automno


L. do D.

Nos primeiros dias do automno subitamente
entrado, quando o escurecer toma uma evidencia de qual-
quer cousa prematura, e parece que tardámos muito no
que fazemos de dia, góso, mesmo entre o trabalho quoti-
diano, esta anticipação de não trabalhar que a propria
sombra traz comsigo, porisso que é noite e a noite é
somno, lares, livramento. Quando as luzes se accendem no
escriptorio amplo que deixa de ser escuro, e fazemos serão sem que ces-
sassemos de trabalhar continuar trabalhando de dia, sinto um comforto absurdo
como uma lembrança de outrem, e estou socegado com o
que escrevo como se estivesse lendo até sentir que irei
dormir.

Somos todos escravos de circumstancias ex-
ternas: um dia de sol abre-nos campos largos no meio de
um café de viella; uma sombra no campo encolhe-nos
para dentro, e abrigamo-nos mal na casa sem portas de
nós mesmos; um chegar da noite, até entre coisas do
dia, alarga, como um leque [que] se abra lento, a consciencia
intima de dever-se repousar.

Mas com isso o trabalho não se atraza: antes se ani-
ma. Já não trabalhamos; recreamo-nos com o assumpto
a que estamos condemnados. E, de repente, pela folha vas-
ta e pautada do meu destino numerador, a casa velha das
tias antigas alberga, fechada contra o mundo, o
chá das dez horas somnolentas, e o candieiro de petroleo
da minha infancia perdida brilhando somente sobre a me-
sa de
linho, obscurece-me, com a luz, a vi-
são do Moreira, illuminado a uma electricidade negra in-
finitos para além de mim. Trazem o chá — é a creada mais
velha que as tias que o traz com os restos do somno e o
mau humor paciente da ternura da velha vassalagem — e eu
escrevo sem errar uma verba ou uma somma atravez de to-
do o meu passado morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim,
esqueço-me a noites longinquas, impollutas de dever e de
mundo, virgens de mysterio e de futuro.

E tam suave é a sensação que me alheia do
debito e do credito que, se acaso uma pergunta me é fei-
ta, respondo suavemente, como se tivesse o meu ser ôco,
como se não fôsse mais que a machina de escrever que
trago commigo, portatil de mim mesmo aberto. Não me cho-
ca a interrupção dos meus sonhos: de tam suaves que são,
continuo sonhando-os por traz de fallar, escrever, res-
ponder, conversar até. E atravez de tudo o chá perdido
finda, e o escriptorio vae fechar... Ergo do livro, que
cerro lentamente, olhos cançados do choro que não tive-
ram, e, numa mixtura de sensações, soffro que ao fechar
o escriptorio se me feche o sonho tambem; que no gesto da
mão com que cerro o livro encubra o passado irreparavel;
que vá para a cama da vida sem somno, sem companhia nem
socego, no fluxo e refluxo da minha consciencia misturada,
como duas marés na noite


negra, no fim dos destinos da saudade
e da desolação.