Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(270)

Nós não podemos amar


L. do D. ou Philatelista

Nós não podemos amar, filho. O amôr é a mais carnal das illusões. Amar é possuir, escuta. E o que possue quem ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a sua materia, comel-o, incluil-o em nós... E essa impossibilidade seria temporária, porque o nosso proprio corpo passa e se transforma, porque nós não possuimos o nosso corpo (possuimos apenas a nossa sensação d'elle), e porque, uma vez possuido esse corpo amado, tornar-se-hia nosso, deixaria de ser outro, e o amôr, porisso, com o desaparecimento do outro-ente, desappareceria.

Possuimos a alma? — Ouve-me em silencio — Nós não a possuimos. Nem a nossa alma é nossa sequér. Como, de resto, possuir uma alma? Entre alma e alma ha o abysmo de serem almas.

Que possuimos? que possuimos? Que nos leva a amar? A belleza? E nós possuimol-a amando? A mais feroz e dominadora posse de um corpo o que possue d'elle? Nem o corpo, nem a alma, nem a belleza sequer. A posse de um corpo lindo não abraça a belleza, abraça a carne cellulada e gordurosa; o beijo não toca na belleza da boca, mas na carne humida dos labios pereciveis em /mucosas;/ a propria copula é um contacto apenas, um contacto esfregado e proximo, mas não uma penetração real, sequér, de um corpo por outro corpo... Que possuimos nós? que possuimos?

As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amôr é um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações? é, ao menos, um modo de sonharmos nìtidamente, e mais gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos, desapparecida a sensação, fica a memoria d'ella connosco sempre, e assim, realmente possuimos...

Desenganemos até d'isto. Nós nem as nossas sensações possuimos. Não fales. A memoria, afinal, é a sensação do passado... E toda a sensação é uma illusão...

— Escuta-me, escuta-me sempre. — Escuta-me e não olhes pela janella aberta a plana outra margem do rio, nem o crepusculo (...), nem esse silvo de um comboio que corta o longe vago (...) — Escuta-me em silêncio...

Nós não possuimos as nossas sensações... Nós não nos possuimos n'ellas.

(Urna inclinada, o crepusculo verte sobre nós um oleo de (...) onde as horas, pétalas de rosas, boiam espaçadamente)