Deus - Usa (BNP/E3, 3-51r-52r-53r)

No alto ermo dos montes


14/4/1930.
L. do D.

No alto ermo dos montes
naturaes temos, quando che-
gamos, a sensação do privi-
legio. Somos mais altos, de
toda a nossa estatura, do que o
alto dos montes. O maximo
da Natureza, pelo menos na-
quelle logar, fica-nos sob as
solas dos pés. Somos, por posi-
ção, reis do mundo visivel.
Em torno de nós tudo é mais
baixo: a vida é encosta
que desce, planicie que jaz,
ante o erguimento e o
pincaro que somos.

Tudo em nós é accidente
e malicia, e esta altura que
temos, não a temos; não somos
mais altos no alto do que a
nossa altura. Aquillo mesmo
que calcamos, nos alça;


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e, se somos altos, é por aquillo mesmo
de que somos mais altos.


Respira-se melhor quando se
é rico; é se mais livre quando
se é celebre; o proprio ter de
um titulo de nobreza é um
pequeno monte. Tudo é artificio,
mas o artificio nem sequer é nosso.
Subimos a elle, ou levaram-nos
até elle, ou nascemos na casa
do monte.

Grande, porém, é o que consi-
dera que do valle ao ceu ou
do monte ao ceu, a distancia que
é differença não faz differença.
Quando o diluvio crescesse,
estariamos melhor nos montes.
Mas quando a maldição de Deus
fosse raios, como a de Jupiter,
ou ventos, como a de Eolo,
o abrigo seria o não termos subido,
e a defeza o rastejarmos.


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Sabio deveras é o que tem a
possibilidade da altura nos mus-
culos e a negação de subir no
conhecimento. Elle tem, por
visão, todos os montes; e tem,
por posição, todos os valles. O sol
que doura os pincaros, doural-os-
ha para elle mais para quem alli o soffre; e o palacio
alto entre florestas será mais
bello ao que o contempla do
valle que ao que o esquece nas
salas que o constituem de pri-
são.

Com estas reflexões me consolo,
pois que me não posso consolar com
a vida. E o symbolo funde-se-
me com a realidade quando, trans-
eunte de corpo e alma por estas
ruas baixas que vão dar ao Tejo,
vejo os altos claros da cidade esplen-
der, como a gloria alheia, das
luzes varias de um sol que já nem está
no poente.