MATLIT_Classification Game - Usa Richard Zenith(59)

Cada vez que o meu propósito se ergueu


Cada vez que o meu propósito se ergueu, por influência de meus sonhos, acima do nível quotidiano da minha vida, e um momento me senti alto, como a criança num balouço, cada vez dessas tive que descer como ela ao jardim municipal, e conhecer a minha derrota sem bandeiras levadas para a guerra nem espada que houvesse força para desembainhar.

Suponho que a maioria daqueles, com que cruzo no acaso das ruas, traz consigo — noto-lho no movimento silencioso dos beiços e na indecisão indistinta dos olhos ou no altear da voz com que rezam juntos — uma igual projecção para a guerra inútil do exército sem pendões. E todos — viro-me para trás a contemplar os seus dorsos de vencidos pobres — terão, como eu, a grande derrota vil, entre os limos e os juncos, sem luar sobre as margens nem poesia de pauis, miserável e marçana.

Todos têm, como eu, um coração exaltado e triste. Conheço-os bem: uns são moços de lojas, outros são empregados de escritório, outros são comerciantes de pequenos comércios, outros são os vencedores dos cafés e das tascas, generosos sem o descobrirem no êxtase da palavra egotista, ou contentes no silêncio do egotismo avaro sem ter que guardar. Mas todos, coitados, são poetas, e arrastam, a meus olhos, como eu aos olhos de eles, a igual miséria da nossa comum incongruência. Têm todos, como eu, o futuro no passado.

Agora mesmo, que estou inerte no escritório, e foram todos almoçar salvo eu, fito, através da janela baça, o velho oscilante que percorre lentamente o passeio do outro lado da rua. Não vai bêbado; vai sonhador. Está atento ao inexistente; talvez ainda espere. Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos. Hoje, que não sou velho ainda, posso sonhar com ilhas do Sul e com Índias impossíveis; amanhã talvez me seja dado, pelos mesmos Deuses, o sonho de ser dono de uma tabacaria pequena, ou reformado numa casa dos arredores. Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho, porque são todos sonhos. Mudem-me os Deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.

No intervalo de pensar isto, o velho saiu-me da atenção. Já o não vejo. Abro a janela para o ver. Não o vejo definitivamente. Saiu. Teve, para comigo, o dever visual de símbolo; acabou e virou a esquina. Se me disserem que virou a esquina absoluta, e nunca esteve aqui, aceitarei com o mesmo gesto com que fecho a janela agora.

Conseguir?...

Pobres semideuses marçanos, que ganham impérios com a palavra e a intenção nobre e têm necessidade de dinheiro com o quarto e a comida! Parecem as tropas de um exército desertado, cujos chefes houvessem um sonho de glória, de que a estes, perdidos entre os limos de pauis, fica só a noção de grandeza, a consciência de ter sido do exército, e o vácuo de nem ter sabido o que fazia o chefe que nunca viram.

Assim cada um se sonha, um momento, o chefe do exército de cuja cauda fugiu. Assim cada um, entre a lama dos ribeiros, saúda a vitória que ninguem pôde ter, e de que ficou como migalhas entre nódoas na toalha que se esqueceram de sacudir.

Enchem os interstícios da acção quotidiana como o pó os interstícios dos móveis quando não são limpos com cuidado. Na luz vulgar do dia comum vêem-se a luzir como vermes cinzentos contra o mogno avermelhado ou entre o mogno e o oleado velho. Tiram-se com um prego pequeno. Mas ninguém tem paciência para os tirar.

Meus pobres companheiros que sonham alto, como os invejo e desprezo! Comigo estão os outros — os mais pobres, os que não têm senão a si mesmos a quem contar os sonhos e fazer o que seriam versos se eles os escrevessem — os pobres diabos sem mais literatura que a própria alma, sem mais lerem da outra, que morrem asfixiados pelo facto de existirem sem terem feito aquele desconhecido exame transcendente que habilita a viver.

Uns são heróis e prostram cinco homens a uma esquina de ontem. Outros são sedutores e até as mulheres que nunca viram lhes não ousaram resistir. Crêem isto quando o dizem, e talvez o digam para que o creiam. Outros ☐. Para todos eles os vencedores do mundo, quaisquer que sejam, são gente.

E todos, como enguias num alguidar, se enrolam entre eles e se cruzam uns acima dos outros, e nunca saem do alguidar. Às vezes falam deles os jornais. Os jornais falam de alguns mais do que algumas vezes — mas a fama nunca.

Esses são os felizes porque lhes é dado o sonho mentido da estupidez. Mas aos que, como eu, têm sonhos sem ilusões ☐