Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(125)

Cada vez que o meu proposito


L. do D.

Cada vez que o meu proposito se ergueu, por influencia de meus sonhos, acima do nivel quotidiano da minha vida, e um momento me senti alto, como a creança num balouço, cada vez d'essas tive que descer como ella ao jardim municipal, e conhecer a minha derrota sem bandeiras levadas para a guerra nem espada que houvesse força para desembainhar.

Supponho que a maioria d'aquelles, com que cruzo no accaso das ruas, traz consigo — noto-lho no movimento silencioso dos beiços e na indecisão indistincta dos olhos ou no altear da voz com que rezam juntos — uma egual projecção para a guerra inutil do exercito sem pendões. E todos — viro-me para traz a contemplar os seus dorsos de vencidos pobres — terão, como eu, a grande derrota vil, entre os limos e os juncos, sem luar sobre as margens nem poesia de paues, miseravel e marçana.

Todos teem, como eu, um coração exaltado e triste. Conheço-os bem: uns são moços de lojas, outros são empregados de escriptorio, outros são commerciantes de pequenos commercios; outros são os vencedores dos cafés e das tascas, gloriosos sem saberem no extase da palavra egotista, [...] Mas todos, coitados, são poetas, e arrastam, a meus olhos, como eu aos olhos de elles, a egual miseria da nossa comum incongruencia. Teem todos, como eu, o futuro no passado.

Agora mesmo, que estou inerte no escriptorio, e foram todos almoçar salvo eu, fito, atravez da janella baça, o velho oscillante que percorre lentamente o passeio do outro lado da rua. Não vae bebado; vae sonhador. Está attento ao inexistente; talvez ainda espere. Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossiveis, e nos deem bons sonhos, ainda que sejam baixos. Hoje, que não sou velho ainda, posso sonhar com ilhas do Sul e com Indias impossiveis; amanhã talvez me seja dado pelos mesmos Deuses, o sonho de ser dono de uma tabacaria pequena, ou reformado numa casa dos arredores. Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho, porque são todos sonhos. Mudem-me os Deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.

No intervallo de pensar isto, o velho sahiu-me da attenção. Já o não vejo. Abro a janella para o ver. Não o vejo ainda. Sahiu. Teve, para commigo, o dever visual de symbolo; acabou e virou a esquina. Se me disserem que virou a esquina absoluta, e nunca esteve aqui, acceitarei com o mesmo gesto com que fecho a janella agora.

Conseguir?...

Pobres semi-deuses marçanos que ganham imperios com a palavra e a intenção nobre e teem necessidade de dinheiro com o quarto e a comida! Parecem as tropas de um exercito desertado cujos chefes houvessem um sonho de gloria, de que a estes, perdidos entre os limos de paues, fica só a noção de grandeza, a consciencia de ter sido do exercito, e o vacuo de nem ter sabido o que fazia o chefe que nunca viram.

Assim cada um se sonha, um momento, o chefe do exercito de cuja cauda fugiu. Assim cada um, entre a lama dos ribeiros, saúda a victoria que ninguém pôde ter, e de que ficou como migalhas entre nodoas na toalha que se esqueceram de sacudir.

Enchem os intersticios da acção quotidiana como o pó os intersticios dos moveis quando não são limpos com cuidado. Na luz vulgar do dia comum veem-se a luzir como vermes cinzentos contra o mogno avermelhado. Tiram-se com um prego pequeno. Mas ninguem tem pressa [?] para os tirar.

Meus pobres companheiros que sonham alto como os invejo e desprezo! Comigo estão os outros — os mais pobres, os que não teem senão a si mesmos a quem contar os sonhos e fazer o que seriam versos se elles os escrevessem — os pobres-diabos sem mais literatura que a propria alma, [...] que morrem asphyxiados pelo facto de existirem [...]

Uns são heroes e prostram cinco homens a uma esquina de hontem. Outros são seductores e até as mulheres inexistentes lhes não ousaram resistir. Crêem isto quando o dizem e todos o dizem porque o crêem. Outros (...) Para todos elles os vencidos do mundo, porque quem sejam são gente.

E todos como enguias num alguidar, se enrolam entre elles e se cruzam uns acima dos outros e nem sahem dos alguidares. Às vezes fallam d'elles os jornaes [...] mas a fama nunca.

Esses são os felizes porque lhes é dado o sonho [...] da estupidez. Mas aos que, como eu, teem sonhos sem illusões (...)