[FIGURAS DOS CAFÉS] Pobres semideuses marçanos
Pobres semideuses marçanos que ganham impérios com a palavra e a intenção nobre e têm necessidade de dinheiro com o quarto e a comida! Parecem as tropas de um exército desertado cujos chefes houvessem um sonho de glória, de que a estes, perdidos entre os limos de pauis, fica só a noção de grandeza, a consciência de ter sido do exército, e o vácuo de nem ter sabido o que fazia o chefe que nunca viram.
Assim cada um se sonha, um momento, o chefe do exército de cuja cauda descaiu.
Assim cada um, entre a lama dos ribeiros, saúda a vitória que ninguem pôde ter, e de que ficaram como migalhas entre nódoas na toalha que se esqueceram de sacudir.
Enchem os interstícios da acção quotidiana como o pó os interstícios dos móveis quando não são limpos com cuidado. Na luz vulgar do dia comum vêem-se a luzir como vermes cinzentos contra o mogno avermelhado ou entre o mogno e o dedo velho.
Podem tirar-se com um prego velho. Mas ninguém tem paciência para os tirar.
Meus pobres companheiros que sonham alto, como os invejo com vergonha! Comigo estão os outros — os mais pobres, os que não têm senão a si mesmos a quem contar os sonhos e fazer o que seriam versos se eles os escrevessem — os pobres diabos sem mais literatura que a própria alma, sem ouvirem louvores da crítica, que morrem asfixiados pelo facto de existirem sem terem feito aquele desconhecido exame transcendente que habilita a viver.
Uns são heróis e prostram cinco homens a uma esquina de ontem. Outros são sedutores e até as mulheres que nunca viram lhes não ousaram resistir. Crêem isto quando o dizem, talvez o digam para que o creiam. Outros, sonhando mais reles, ouvem e acreditam. Para todos eles os vencidos do mundo, quaisquer que sejam, são gente.
E todos como eirós num alguidar, se enrolam entre eles e se cruzam uns acima dos outros e nem saem do alguidar. Às vezes falam deles os jornais. Os jornais falam de alguns mais do que algumas vezes — mas a fama nunca.
Esses são os felizes porque lhes é dado o sonho mentido da estupidez. Mas aos que, como eu, têm sonhos sem ilusões (...)