Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(122)

...reles como os fins da vida


L. do D.

...reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós taes fins.

A maioria, senão a totalidade, dos homens vive(m) uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quasi todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na morte, porque nessas collabora o Mysterio (e a mesma vida se desmente).

Oiço, coados pela minha desattenção, os ruidos que sobem, /fluidos/ e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e de fóra como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautellas; riscar redondo de rodas — carroças e carros rapidos por saltos —; automoveis, mais ouvidos no movimento que no gyro; o tal sacudir de qualquer cousa panno a qualquer janella; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metallico do electrico na outra rua; o que de mixturado emerge do transversal; subidas, baixas, silencios do variado; trovões tropegos do transporte; alguns passos; principios, meios, e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensal-o, como uma pedra entre herva, em qualquer modo espreitando de fóra de logar.

Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoira, a cantiga interrompida — (meio-fado) —; a vespera na combinação da saccada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da commoda — tudo isto a realidade, a realidade anaphrodisiaca que não entra na minha imaginação.

Leves os passos da creada ajudante, chinellos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sahe e se despede alto, com o bater da porta cortando o echo do logo que vem depois do até; um socego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruido de loiça que vae para se lavar; correr de agua; "então não te disse que"... e o silencio apita do rio.

Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre cenesthesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nullidade do pensamento, da emoção, da acção, quasi da mesma sensação, o occaso-nato da vontade dispersa. E então reflicto, quasi sem pensamento, que a maioria, senão a totalidade, dos homens, assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins ultimos, o mesmo abandono dos propositos formados, a mesma /sensação/ da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é somno. Sempre que alguem me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruido da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e tocam a campainha.

O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fim do corredor. Os pratos levados erguem a voz de agua e louça. [...]