Amor - Usa Jerónimo Pizarro(182)

... reles como os fins da vida


L. do D.

...reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós taes fins.

A maioria, se não a totalidade, dos homens vive/m/ uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quasi todas as suas dores, salvo naquellas que se fundamentam na morte, porque para ellas contribue o Mysterio e a mesma vida se desmente.

Oiço, coados pela minha inattenção, os ruidos que rompem, falidos e dispersos, em ondas entrefluentes, ao acaso, de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como a hortaliça, ou o social, como as cautellas; som longo de rodas — carroças e carros rapidos por saltos —; automoveis, mais ouvidos no aviso que no gyro; o tal sacudir de qualquer cousa panno a qualquer janella; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metallico do electrico na outra rua; o que de mixturado emerge do transversal; subidas, baixas, silencios do variado; trovões tropegos do transporte; alguns passos; principios, meios e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensal-o, como uma pedra entre herva, em qualquer modo espreitando de fóra de logar.

Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoira, a cantiga interrompida (se é fado?); a vespera na combinação da saccada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da commoda — tudo isto é a realidade, a realidade anaphrodisiaca que não entra na minha imaginação.

Leves os passos da creada ajudante, chinellos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa de trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sahe e se despede alto, com o bater da porta cortando o echo do logo que vem depois do até; um socego, como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruido de loiça que vae para se lavar; correr de agua; "então não te disse que"... e o silencio apita do rio.

Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre cenesthesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes longos minutos, esta nullidade do pensamento, da emoção, da acção, quasi da mesma sensação, o occaso-nato da vontade dispersa. E então reflicto, quasi sem pensamento, que a maioria, se não a totalidade, dos homens, assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins ultimos, o mesmo abandono dos propositos formados, a mesma diluição da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembro-me sempre do homem ao sol. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é somno. Sempre que alguem me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruido da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e trintina o som da campainha.

O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fundo do corredor. Os pratos lavados erguem as vozes de agua e louça. O ar freme? O camião passa estremecendo os fundos, e como tudo acaba, ergo-me de pensar.