Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(369)

[A REALIDADE ANAFRODISÍACA] A maioria, senão a totalidade dos homens, vive


A maioria, senão a totalidade dos homens, vive uma vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase todas as suas dores, reles como os fins da vida que vivemos, sem que queiramos nós tais fins.

Oiço, coados pela minha inatenção os ruídos que rampam, lúcidos e dispersos em ondas entrefluentes ao acaso e de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vendedores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social, como as cautelas; troar cascado de rodas — carroças e carros rápidos aos saltos —; automóveis, mais ouvidos no aviso que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar alto; o gemido metálico do eléctrico na outra rua; o que de misturado emerge do transversal; subidas, baixas, som longo do variado; trovões /trôpegos/ do transporte; alguns passos; princípios, meios e fins de vozes — e tudo isto existe para mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em qualquer modo espreitando de fora do lugar.

Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sons confluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoira, a cantiga interrompida (se é fado); a véspera na combinação da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos cigarros que ficaram em cima da cómoda — tudo isto é a realidade, a realidade anafrodisíaca que não entra na minha imaginação.

Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revisiono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o som toma qualquer coisa, de trança encarnada e preta; seguros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que vem depois do até; um sossego como se o mundo acabasse neste quarto andar alto; ruído de loiça que vai para se lavar; correr de água; "então não te disse que"... e o silêncio apita do rio.

Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tempo, entre sinestesias. E é prodigioso pensar que eu não quereria, se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento, da emoção, da acção, quase da mesma sensação, o ocaso-nato da vontade dispersa. E então reflicto, quase sem pensamento, que a maioria, senão a totalidade dos homens, assim vive, mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos propósitos formados, a mesma diluição da vida. Sempre que vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão sonhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e trila o som da campainha.

O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os passos cessam no fundo do corredor. Os pratos lavados erguem a voz de água e louça.

O caixeiro passa saindo do fundo e como tudo sai, ergo-me do pensar.