Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(482)

Se considero com attenção a vida


L. do D.

18-6-1931

Se considero com attenção a vida que os homens vivem, nada encontro nella que a difference da vida que vivem os animais. Uns e outros são lançados inconscientemente atravez das cousas e do mundo; uns e outros se entreteem com intervallos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo percurso organico; uns e outros não pensam para além do que pensam, nem vivem para além do que vivem. O gato espoja-se ao sol e dorme alli. O homem espoja-se á vida, com todas as suas complexidades, e dorme alli. Nem um nem outro se liberta da lei fatal de ser como é. Nenhum tenta levantar o peso de ser. Os maiores dos homems amam a gloria, mas amam-a, não como a uma immortalidade propria, senão como a uma immortalidade abstracta, de que porventura não participem.

Estas considerações, que em mim são frequentes, levam-me a uma admiração subita por aquella especie de individuos que instinctivamente repugno. Refiro-me aos mysticos e aos ascetas - aos remotos de todos os Tibetes, aos Simões Stylitas de todas as columnas. Estes, ainda que no absurdo, tentam, de facto, libertar-se da lei animal. Estes, ainda que na loucura, tentam, de facto, negar a lei da vida, o espojar-se ao sol e o aguardar da morte sem pensar nella. Buscam, ainda que parados no alto de uma columna; anseiam, ainda que numa cella sem luz; querem o que não conhecem, ainda que no martyrio dado e na magua imposta.

Nós outros todos, que vivemos animais com mais ou menos complexidade, atravessamos o palco como figurantes que não fallam, contentes da solemnidade vaidosa do trajecto. Cães e homens, gatos e heroes, pulgas e genios, brincamos a existir, sem pensar nisso (que os melhores pensam só em pensar) sob o grande socego das estrellas. Os outros — os mysticos da má hora e do sacrificio — sentem ao menos, com o corpo e o quotidiano, a presença magica do mysterio. São libertos, porque negam o sol visivel; são plenos, porque se esvaziaram do vacuo do mundo.

Estou quasi mystico, com elles, ao fallar d'elles, mas seria incapaz de ser mais que estas palavras escriptas ao sabor da minha inclinação occasional. Serei sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira. Serei sempre, em verso ou prosa, empregado de carteira. Serei sempre no mystico ou no não-mystico, local e submisso, servo das minhas sensações e da hora em que as ter. Serei sempre, sob o grande pallio azul do céu mudo, pagem num rito incomprehendido, vestido de vida para cumpril-o, e executando, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nella, e eu possa ir comer coisas de gala nas grandes barracas que estão, dizem, lá em baixo no fundo do jardim.