Escrever é Esquecer - Usa (BNP/E3, 5-52)

Crear dentro de mim um estado


L. do D.

Crear dentro de mim um estado com uma politica, com partidos e revoluções,
e ser eu isso tudo, ser eu Deus no pantheismo real d'esse povo-eu, essencia
e acção dos seus corpos, das suas almas, da terra que pisam e dos actos que
fazem. Ser tudo, ser elles e não elles. Ai de mim! este ainda é um dos so-
nhos que não logro realisar. Se o realisasse morreria talvez, não sei por-
que, mas não se deve poder viver depois disso, tamanho o sacrilegio comme-
tido contra Deus, tamanha usurpação do poder divino de ser tudo.

O prazer que me daria crear um jesuitismo das sensações!

Ha metaphoras que são mais reaes do que a gente que anda na rua. Ha imagens
nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita
mulher. Ha phrases literarias que teem uma individualidade absolutamente
humana. Passos de paragraphos meus ha que me arrefecem de pavôr,
tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do
meu quarto, na noite, na sombra,           Tenho escripto phrases cujo som, li-
das alto ou baixo — é impossivel occultar-lhes o som — é absolutamente o de
uma cousa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente.

Porque exponho eu de vez em quando processos contradictorios e inconcilia
veis de sonhar e de aprender a sonhar. Porque, provavelmente, tanto me habi-
tuei a sentir o falso como o verdadeiro, o sonhado tão nitidamente como o
visto, que perdi a distinção humana, falsa creio, entre a verdade e a mentira.


Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os ouvidos, ou com outro
sentido qualquér, para que eu sinta que aquillo é real. Pode ser mesmo que
eu sinta duas cousas inconjugaveis ao mesmo tempo. Não importa.

Ha creaturas que são capazes de soffrer longas horas por não lhes ser possi-
vel ser uma figura d'um quadro ou d'um naipe de baralho de cartas. Ha almas
sobre quem pesa como uma maldição o não lhes ser possivel ser hoje gente da
idade media. Aconteceu d'este soffrimento em tempo. Hoje já me não acontece.
Requintei para além disso. Mas dóe-me, por exemplo, não me poder sonhar dois
reis em reinos diversos, pertencentes, por exemplo, a universos com diversas
especies de espaços e de tempos. Não conseguir isso magôa-me verdadeiramente.
Sabe-me a passar fome.

Poder sonhar o inconcebivel visibilisando-o é um dos grandes triumphos que
não eu, que sou tão grande, senão raras vezes attinjo. Sim, sonhar que sou
por exemplo, simultaneamente, separadamente, inconfusamente, o homem e a
mulher d'um passeio que um homem e uma mulher dão á beira rio. Vér-me, ao
mesmo tempo, com egual nitidez, do mesmo modo, sem mistura, sendo as duas
cousas com egual integração nellas, um navio consciente n'um mar do sul e
uma pagina impressa d'um livro antigo. Que absurdo que isto parece! Mas tudo
é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.