Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(66)

Tenho grandes estagnações


L. do D.

10-XII-1930

Tenho grandes estagnações. Não é que, como toda a gente, esteja dias sobre dias para responder num postal á carta urgente que me escreveram. Não é que, como ninguem, addie indefinidamente o facil que me é util, ou o util que me é agradavel. Ha mais subtileza na minha desintelligencia commigo. Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura magnos dias; só a vida vegetativa da alma — a palavra, o gesto, o habito — me exprimem eu para os outros, e, atravez de elles, para mim.

Nesses periodos da sombra, sou incapaz de pensar, de sentir, de querer. Não sei escrever mais que algarismos, ou riscos. Não sinto, e a morte de quem amasse far-me-hia a impressão de ter sido realisada numa lingua extrangeira. Não posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas palavras, os meus actos certos, não fossem mais que uma respiração perpipherica, instincto rhythmico de um organismo qualquer.

Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto da minha vida, se sommasse, se não haveria passado assim. Ás vezes occorre-me que, quando dispo esta paragem de mim, talvez não esteja na nudez que supponho, e haja ainda vestes impalpaveis a cobrir a eterna ausencia da minha alma verdadeira; occorre-me que pensar, sentir, querer tambem podem ser estagnações, perante um mais intimo pensar, um sentir mais meu, uma vontade perdida algures no labyrintho do que realmente sou.

Seja como fôr deixo que seja. E ao deus ou aos deuses, que haja, largo da mão o que sou, conforme a sorte manda e o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido.