A arte livra-nos illusoriamente


A arte livra-nos illusoriamente da sordidez de sermos. Emquanto sentimos os males e as injurias de Hamlet, principe da Dinamarca, não sentimos os nossos — vis porque são nossos e vis porque são vis.

O amor, o somno, as drogas e intoxicantes, são fórmas elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo effeito que ella. Mas amor, somno, drogas tem cada um a sua desillusão. O amor farta ou desillude. Do somno disperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruina de aquelle mesmo physico que serviram de estimular. Mas na arte não ha desillusão porque a illusão foi admittida desde o principio. Da arte não ha dispertar, porque nella não dormimos, embora sonhassemos. Na arte não ha tributo ou multa que paguemos por ter gosado d'ella.

O prazer que ella nos offerece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagal-o ou que arrepender-nos d'elle.

Por arte entende-se tudo que nos delicía sem que seja nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.

Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrahir de uma coisa a sua essencia.


Título: A arte livra-nos illusoriamente
Heterónimo: Não atribuído
Número: 510
Página: 480
Data: 1931 (high)
Nota: [3-3r];
Nota: Jerónimo Pizarro edita este texto em apêndice, no conjunto "Textos sem destinação certa inventariados dentro do núcleo" (2010: 477-489).