Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(152)

Depois que os ultimos pingos


                                      25-XII-1929.

L. do D.

Depois que os ultimos pingos da chuva começaram
a tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado
da rua o azul do ceu começou a espelhar-se lentamente,
o som dos vehiculos tomou outro canto, mais alto e ale-
gre, e ouviu-se o abrir de janellas contra o desesqueci-
mento do sol. Então pela rua via estreita, do fundo da es-
quina proxima, rompeu o convite alto do primeiro caute-
leiro, e os pregos pregados nos caixotes da loja frontei-
ra reverberaram pelo espaço claro.

Era um feriado incerto, legal e que se não manti-
nha. Havia socego e trabalho conjunctos, e eu não tinha
que fazer. Tinha me levantado cedo e tardava em preparar-
me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto
e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade — gestos
que me esquecera de fazer, ambições
impossiveis realizadas sem rumo, conversas firmes e conti-
nuas que, se fôssem, teriam sido. E neste devaneio sem
grandeza nem calma, neste atardar sem esperança nem fim,
gastavam meus passos a manhã livre, e as minhas palavras altas, ditas baixo,
soavam multiplas minhas no claustro do meu simples iso-
lamento.

A minha figura humana, se a considerava com uma
attenção externa, era do ridiculo que tudo quanto é humano
assume sempre que é intimo. Vestira, sobre os trajes simp-
les do somno abandonado, um sobretudo velho, que me ser-
ve para estas vigilias matutinas. Os meus chinellos velhos
estavam rotos, principalmente o do pé esquerdo. E, com as
mãos nos bolsos do casaco posthumo, eu fazia a
avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos,
cumprindo com o devaneio inutil um sonho egual aos de to-
da a gente.

Ainda, pela frescura aberta da minha janella unica,
se ouviam cahir dos telhados os pingos grossos da accumula-
ção da chuva ida. Ainda, vagos, havia frescores de haver
chuvido. O céu, porém, era de um azul conquistador,
e as nuvens que restavam da chuva derrotada ou cansada,
cediam, retirando para sobre os lados do Castello, os ca-
minhos legitimos do céu todo.

Era a occasião de estar alegre. Mas pesava-me qual-
quer coisa, uma ansia desconhecida, um desejo sem defini-
ção, nem até réles. Tardava-me, talvez, a sensação de es-
tar vivo. E, quando me debrucei da janella altissima, so-
bre a rua para onde olhei sem vel-a, senti-me de repente
um d'aquelles trapos humidos de limpar coisas su-
jas, que se levam para a janella para seccar, mas se esque-
cem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.