Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(304)

Suponho que seja o que chamam


L. do D.

... como um naufrago afogando-se á vista de ilhas maravilhosas, em aquelles mesmos mares doirados de violeta de que em leitos remotos verdadeiramente sonhára.

Suponho que seja o que chamam um decadente, que haja em mim, como definição externa do meu espirito, essas lucilações tristes de uma extranheza postiça que incorporam em palavras inesperadas uma alma anciosa e malabar. Sinto que sou assim e que sou absurdo. Porisso busco, por uma imitação de uma hypothese dos classicos, figurar ao menos em uma mathematica expressiva as sensações decorativas da minha alma substituida. Em certa altura da cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção — se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas, se nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me embrenho, me descaminho e vejo outras cousas. Formam-se em mim associações de ideas, de imagens, de palavras — tudo lucido e diffuso —, e tanto estou dizendo o que sinto, como o que supponho que sinto, nem distingo o que a alma me suggere do que as imagens, que a alma deixou cahir, me enfloram no chão, nem, até, se um som de palavra barbara, ou um rhythmo de phrase interposta, me não tiram do assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrahir. E isto tudo, que, se o repito, deveria dar-me uma sensação de futilidade, de fallencia, de soffrimento, não consegue senão dar-me asas de ouro. Desde que fallo de imagens, talvez porque fosse a condemnar o abuso d'ellas, nascem-me imagens; desde que me ergo de mim para repudiar o que não sinto, eu o estou sentindo já e o proprio repudio é uma sensação com bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo classico, um adjectivo espacial e sobrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara deante de mim a pagina escripta dormentemente, e as lettras da minha tinta da caneta são um mappa absurdo de signaes magicos. E deponho-me como á caneta, e traço a capa de me reclinar sem nexo, longinquo, intermedio e succubo, final como um naufrago afogando-se etc.