Leitura Crítica 1 - Usa (BNP/E3, 1-65)

Cada vez que o meu proposito


L. do D.

Cada vez que o meu proposito se ergueu, por influen-
cia de meus sonhos, acima do nivel quotidiano da minha vida,
e um momento me senti alto, como a creança num balouço, cada
vez d'essas tive que descer como ella ao jardim municipal, e conhecer
a minha derrota sem bandeiras levadas para a guerra nem espa-
da que houvesse força para desembainhar.

Supponho que a maioria d'aquelles, com que cruzo no a-
caso das ruas, traz comsigo — noto-lh'o no movimento silencio-
so dos beiços e na indecisão indistincta dos olhos ou no altear da voz com que rezam junctos, — uma egual
projecção para a guerra inutil do exercito sem pendões. E to-
dos — viro-me para traz a contemplar os seus dorsos de vencidos
pobres — terão, como eu, a grande derrota vil, entre os limos
e os juncos, sem luar sobre as margens nem poesia de paues,
miseravel e marçana.

Todos teem, como eu, um coração exaltado e triste. Conhe-
ço-os bem: uns são moços de lojas, outros são empregados de
escriptorio, outros são commerciantes de pequenos commercios;
outros são os vencedores dos
cafés e das tascas,
gloriosos generosos
sem dinheiro no extase da palavra
egoista, ou contentes no
silencio do egotismo avaro
sem ter que guardar.
Mas todos, coitados, são poetas, e arrastam, a meus olhos, como eu
aos olhos de elles, a egual miseria da nossa comum incongruencia.
Teem todos, como eu, o futuro no passado.

Agora mesmo, que estou só inerte no escriptorio, e foram todos
almoçar salvo eu, fito, atravez da janella baça, o velho oscillan-
te que percorre lentamente o passeio do outro lado da rua. Não
vae bebado; vae sonhador. Está attento ao inexistente; talvez
ainda espere. Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos
conservem os sonhos ainda quando sejam impossiveis, e nos deem
bons sonhos, ainda que sejam baixos. Hoje, que não sou velho
ainda, posso sonhar com ilhas do Sul e com Indias impossiveis;
amanhã talvez me seja dado, pelos mesmos Deuses, o sonho de ser
dono de uma tabacaria pequena, ou reformado numa casa dos arre-
dores. Qualquer dos sonhos é o mesmo sonho, porque são todos so-
nhos. Mudem-me os Deuses os sonhos, mas não o dom de sonhar.

No intervallo de pensar isto, o velho sahiu-me da atten-
ção. Já o não vejo. Abro a janella para o ver. Não o vejo ainda definitivamente.
Sahiu. Teve, para commigo, o dever visual de symbolo; acabou e
virou a esquina. Se me disserem que virou a esquina absoluta,
e nunca esteve aqui, acceitarei com o mesmo gesto com que fecho
a janella agora.

Conseguir?...

Pobres semi-deuses marçanos que ganham
imperios com a palavra e a intenção nobre, e teem
necessidade de dinheiro com o
quarto e a comida! Parecem as
tropas de um exercito desertado, cujos
chefes houvessem um sonho de gloria,

de que a estes, perdidos entre
os limos de paues, fica só
a noção de grandeza, a consciencia de
ter sido do exercito, e o vacuo de nem ter
sabido o que fazia o chefe que nunca viram.

Assim cada um se sonha, um momento, o
chefe do exercito de cuja cauda fugiu descahiram.
Assim cada um, entre a lama dos
ribeiros, saúda a victoria que ninguém
pôde ter, e de que ficou ficaram como migalhas entre nodoas
na toalha que se esqueceram de sacudir repartir.


Enchem os intersticios da acção quotidiana como o pó
os intersticios dos moveis quando não são limpos com cuidado.
Na luz vulgar do dia comum veem-se a luzir como
vermes cinzentos contra o mogno avermelhado.
ou entre o mogno e o oleado velho.
Tiram-se Podem tirar-se com um prego pequeno. Mas ninguem tem paciencia para
os tirar.

Meus pobres companheiros que sonham alto, como os
invejo com vergonha e desprezo! Commigo estão os outros — os mais
pobres, os que não teem senão a si mesmos a quem
contar os sonhos e fazer o que seriam versos se
elles os escrevessem — os pobres-diabos sem
mais litteratura que a propria alma, sem mais
lerem da outra, que morrem asphyxiados
pelo facto de existirem sem terem feito aquelle
desconhecido exame transcendente que habilita
a viver.

                ──────────

Uns são heroes e prostram cinco
homens a uma esquina de hontem. Outros são
sedutores e até as mulheres inexistentes que nunca viram lhes
não ousaram resistir.
Creem isto
quando o dizem,
e talvez o digam
para que o creiam.
Outros
                  Para todos elles
os vencedores do mundo , quaesquer que sejam são
gente.

E todos como enguias eirós num alguidar, se enrolam entre
elles e se cruzam uns acima dos outros, e nem sahem do
alguidar.       Ás vezes fallam d'elles os jornaes. Os jornaes fallam d'alguns mais do que algumas vezes — mas a fama
nunca.
Esses são os felizes porque lhes é
dado o sonho mentido da
estupidez. Mas aos que, como eu,
teem sonhos sem illusões