Quando vivemos constantemente


                    TRECHO

  DO "LIVRO DO DESASOSSEGO", COMPOSTO POR BERNARDO
    SOARES, AJUDANTE DE GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE
                    LISBOA.

Quando vivemos constantemente no abstrato — seja
o abstrato do pensamento, seja o da sensação pensada —,
não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade,
se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que,
em acôrdo com nós mesmos, mais deveriamos sentir.

Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu
seja de alguém, o saber que êle está doente, ou que
morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta,
apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão di-
recta do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À
força de viver de imaginar, gasta-se o poder de ima-
ginar, sobretudo o de imaginar o real. Vivendo mental-
mente do que não ha nem póde haver, acabamos por não
poder cismar o que póde haver.

Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospi-
tal, para ser operado, um velho amigo meu, que não ve-
jo ha muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre
com o que suponho ser saudade. A unica sensação que
recebi, de positiva e de clara, foi a da maçada que
forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a al-
ternativa irónica de, não tendo paciencia para a visi-
ta, ficar arrependido de a não fazer.

Nada mais... De tanto lidar com sombras, eu mes-
mo me converti numa sombra — no que penso, no que sin-
to, no que sou. A saudade do normal que nunca fui entra então na substância do
meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto. Não
sinto propriamente pena do amigo que vai ser operado.
Não sinto propriamente pena de todas as pessôas que vão ser
operadas, de todos quantos sofrem e penam nêste
mundo. Sinto pena, tamsòmente, de não saber ser quem
sentisse pena.

E, num momento, estou pensando em outra coisa,
inevitavelmente, por um impulso que não sei o que é.
E então, como se estivesse delirando, mistura-se-me
com o que não cheguei a sentir, com o que não pude ser,
um rumor de arvores, um som de agua correndo para tan-
ques, uma quinta inexistente... Esfórço-me
por sentir, mas já não sei como se sente. Tornei-me a
sombra de mim mesmo, a quem entregasse o meu ser. Ao
contrário daquêle Peter Schlemil do conto alemão, não
vendi ao Diabo a minha sombra, mas a minha substância.
Sofro de não sofrer, de não saber sofrer. Vivo ou
finjo que vivo? Durmo ou estou desperto? Uma vaga


                                    Trecho - pag. 2.

aragem, que sai fresca do calôr do dia, faz-me esque-
cer tudo. Pesam-me as pálpebras agradavelmente...
Sinto que êste mesmo sol doira os campos onde não es-
tou e onde não quero estar... Do meio dos ruidos da
cidade sai um grande silêncio... Que suave! Mas que
mais suave, talvez, se eu pudesse sentir! ...

                            FERNANDO PESSOA


Identificação: bn-acpc-e-e3-5-1-85_0025_13_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-5-1-85_0027_14_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.5cm X 21.6cm, 27.5cm X 21.6cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (violet-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta roxa.
Data: 19-06-1934 (high)
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de duas folhas de papel de máquina.
Fac-símiles: BNP/E3, 5-13-14.1 , BNP/E3, 5-13-14.2