Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 5-12)

Quando vivemos constantemente


L. do D.

Quando vivemos constantemente no abstracto — seja o
abstracto do pensamento, seja o abstracto da sensação
pensada —, não tarda que, contra nosso mesmo sentimento
ou vontade, se nos tornem phantasmas aquellas coisas da
vida real que mais deveriamos sentir, em accordo com nós
mesmos.

Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja
de alguem, o saber que elle está doente, ou que morreu,
não me causa mais que uma impressão vaga, incerta, apaga-
da, que me envergonho de sentir. Só a visão directa do ca-
so me daria emoção. O excesso de imaginação annula a ima-
ginação. À força de viver de imaginar, quebra-se-nos o
poder de imaginar. Vivendo mentalmente do que não ha nem
póde haver, acabamos por não poder scismar o que pode ha-
ver.

Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital,
para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo ha mui-
to tempo, mas que sinceramente lembro sempre com saudade.
A unica sensação que recebi, de positiva e clara, foi a
da maçada que forçosamente me daria o ter ir visital-
o, com a alternativa ironica de, não tendo paciencia para
a visita, ficar arrependido de a não fazer.

Nada mais... De tanto lidar com sombras,
eu mesmo me converti numa sombra — no que penso, no que
sinto, no que sou.
A saudade do normal que nunca fui entra então na substan-
cia do meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto.
Não sinto propriamente pena do amigo que vae ser operado.
Não sinto propriamente pena de todas as pessoas que são
operadas, de todos quantos soffrem e penam neste mundo.
Sinto pena, tamsòmente, de não saber ser quem sentisse
pena.

E, num momento, estou pensando em outra coisa, inevi-
tavelmente, por um impulso que não sei o que é. E então,
como se estivesse delirando, mixtura-se-me com o que não
cheguei a sentir, com o que não pude ser, um rumor de ar-
vores, um som de agua correndo para tanques, uma quinta


inexistente... Exforço-me por sentir, mas já não sei como
se sente. Tornei-me a sombra de mim mesmo, a quem entre-
gasse o meu ser. Ao contrario daquelle Peter Schlemil do
conto allemão, não vendi minha sombra, mas minha substan-
cia. Soffro de não soffrer, de não saber soffrer. Vivo
ou finjo que vivo? Durmo ou estou disperto? Uma vaga ara-
gem, que sahe fresca do calor do dia, faz-me esquecer tudo. Pesam-me as palpe-
bras agradavelmente... Sinto que este mesmo sol doira os
campos onde não estou e onde não quero estar... Do meio
dos ruidos da cidade sahe um grande silencio... Que suave! Mas que mais suave, talvez,
se eu pudesse sentir!...

                                    19-6-1934.