Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 5-55)

Ás vezes, nos meus dialogos


L. do D.

Ás vezes, nos meus dialogos commigo, nas tardes requintadas da
Imaginação, em coloquios cançados em crepusculos de salões suppostos,
pergunto-me, n'aquelles intervallos da conversa em que fico a sós
com um interlocutor mais eu do que os outros, porque razão
verdadeira não haverá a nossa epoca scientifica estendido a sua von-
tade de comprehender até aos assumptos que são artificiaes. E uma das
perguntas em que com mais languidez me demoro é a porque se não faz,
a par da psychologia usual das creaturas humanas e subhumanas,
uma psychologia tambem — que a deve haver — das figuras artificiaes
e das creaturas cuja existencia se passa apenas nos tapetes e nos qua-
dros. Triste noção tem da realidade quem a limita ao organico, e não
põe a idea de uma alma dentro das estatuetas e dos lavôres. Onde ha forma ha
alma.

Não são uma ociosidade estas minhas considerações commigo, mas
uma elucubração scientifica como qualquér outra que o seja.
Porisso, antes, de e sem ter uma resposta, supponho o possivel actual e
entrego-me, em analyses interiores, á visão imaginada de as-
pectos possiveis d'este desideratum realizado. Mal n'isso penso, logo
dentro da visão do meu espirito surgem scientistas curvados sobre
estampas, sabendo bem que ellas são vidas; microscopistas da tessi-
tura rugosa dos tapetes, physicistas do seu desenho largo e bruxo-
leante nos contornos, chimicos, sim, da idéa das formas e das
côres nos quadros; geologistas das camadas estracticas dos cama-
pheus; psychologos, enfim — e isto mais importa — que uma a uma
notam e congregam as sensações que deve sentir uma estatueta, as
idéas que devem passar pelo psychismo colorido de uma figura de quadro ou de


vitral, os impulsos loucos, as paixões sem freio, as compaixões e odios
ocasionaes e           que teem uma curiosa especie de fixidezes e
morte nos gestos eternos dos baixos-relevos, nos invisiveis movimentos
dos figurantes das nas telas.

Mais do que outras artes, são a literatura e a musica
propicias ás subtilezas de um psychologo. As figuras de
romance são — como todos sabem — tão reaes como qualquér de nós.
Certos aspectos de sons teem uma alma-alada e rapida,
mas susceptivel de psychologia e sociologia. Porque
— bom é que os ignorantes o saibam — as sociedades existem dentro
das cores, dos sons, das phrases, e ha regimes e
revoluções, reinados, politicas e           — ha-os em absoluto
e sem metaphora — no conjuncto mathematico das simphonias, no
Todo organizado das novellas, nos metros quadrados d'um
quadro complexo, onde gosam, soffrem, e misturam as attitudes
coloridas de guerreiros, de amorosos, ou de symbolicos.
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Quando se quebra uma chavena da minha colecção japoneza, eu sonho que
mais do que um descuido das mãos de uma creada serva tinham sido a causa, ou tinham
estado os anseios das figuras que habitam as curvas d'aquella           de louça;
a resolução tenebrosa de suicidio que as tomou não me causa espanto.
Serviram-se da creada, como um de nós de um revolver. Saber isto é estar além
da sciencia hodierna, e com que precisão eu sei isto!