Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(497)

Por facil que seja


L. do D.

Por facil que seja, todo o gesto representa a violação d'um segredo espiritual. Todo o gesto é um acto revolucionario; (um exilio, talvez, da verdadeira (...) dos nossos propositos).

A acção é uma doença do pensamento, um cancro da imaginação. Agir é exilar-se. Toda a acção é incompleta e imperfeita. O poema que eu sonho não tem falhas senão quando tento realizal-o. (No mytho de Jesus está escripto isto; Deus, ao tornar-se homem, não pode acabar senão pelo martyrio. O supremo sonhador tem por filho o martyrio supremo).

As sombras rotas das folhagens, o canto tremulo das aves, os braços estendidos dos rios, trepidando ao sol o seu luzir fresco, as verduras, as papoulas, e a simplicidade das sensações — ao sentir isto, sinto /d'elle/ saudades, como se ao sentil-o o não sentisse.

As horas, como um carro ao entardecer, regressam chiando pelas sombras dos meus pensamentos. Se ergo os olhos de sobre o meu pensamento, elles ardem-me do espectaculo do mundo.

Para realizar um sonho é preciso esquece-lo, distrahir d'elle a attenção. Por isso realizar é não realizar. A vida está cheia de paradoxos como as rosas de espinhos.

Eu desejaria fazer a apotheose de uma incoherencia nova, que ficasse sendo como que a constituição negativa da nova anarchia das almas. Compilar um digesto dos meus sonhos pareceu-me sempre que seria util à humanidade. Por isso nunca me abstive de o tentar. A idéa de que o que eu fazia pudesse ser aproveitavel magoou-me, seccou-me para mim.

Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausencias de cidade da minha Acção entre as arvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os eccos da vida dos meus gestos. Durmo a minha memoria como procissões infinitas. Nos calices da minha meditação só bebo o [...] do vinho louro; só o bebo com os olhos, fechando-os, e a vida passa como uma vella longinqua.

Os dias de sol sabem-me ao que eu não tenho. O ceu azul, e as nuvens brancas, as arvores, a flauta que alli falta — eclogas incompletas pelo estremecimento dos ramos... Tudo isto e a harpa muda por onde eu roço a leveza dos meus dedos.