L. do D. — Prefacio
Ele mobilára — é impossivel que não fôsse á custa de algumas cousas essenciaes — com um certo e approximado luxo os seus dois quartos. Cuidára especialmente das cadeiras — de braços, fundas, molles —, dos reposteiros e dos tapetes. Dizia elle que assim se creára um interior "para manter a dignidade do tedio". No quarto á moderna o tedio torna-se desconforto, /magoa/ physica.
Nada o obrigára nunca a fazer nada. Em creança passára isoladamente. Aconteceu que nunca passou por nenhum agrupamento. Nunca frequentára um curso. Não pertencera nunca a uma multidão. Dera-se com elle o curioso phenomeno que com tantos — quem sabe, vendo bem, se com todos? — se dá, de as circumstancias occasionaes da sua vida se terem talhado á imagem e semelhança da direcção dos seus instintos, de inercia todos, e de affastamento.
Nunca teve de se defrontar com as exigencias do estado ou da sociedade. Ás proprias exigencias dos seus instinctos elle se furtou. Nada o approximou nunca nem de amigos nem de amantes. Fui o unico que, de alguma maneira, estive na intimidade d'elle. Mas — a par de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca elle me teve realmente por amigo — percebi sempre que elle alguem havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao principio isto me doesse, quando o notei, por fim vendo tudo atravez do unico criterio digno de um psychologo, que fiquei do mesmo modo amigo d'elle e dedicado ao fim para que elle me approximou de si — a publicação d'este seu livro.
Até n'isto — é curioso descobril-o — as circumstancias, pondo ante elle quem, do meu caracter, lhe pudesse servir, lhe fôram favoraveis.