Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(39)

Accordei hoje muito cedo


L. do D.

Accordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me
logo devagar da cama sob o estrangulamento de um tedio incomprehensivel.
Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o pode-
ria ter feito. Era um tedio absoluto e completo, mas fundado
em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisiveis,
forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o
solo, e todo eu tremia do embate incognito. Uma nausea physica
da vida inteira nasceu com o meu dispertar. Um horror a ter que
viver ergueu-se commigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a
impressão fria de que não ha solução para problema algum.

Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos
minimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de alli
mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia
como se fallasse soluçasse.

Com passos largos e falsos, que em vão procurava tornar
outros, percorri, descalço, o comprimento pequeno do quarto, e
a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta ao canto
para o corredor da casa. Com movimentos incoherentes e impre-
cisos, toquei nas escovas em cima da commoda, desloquei uma ca-
deira, e uma vez bati com a mão movida em baloiço o ferro acre
dos pés da cama ingleza. Accendi um cigarro, que fumei por sub-
consciencia, e só quando vi que tinha cahido cinza sobre a ca-
beceira da cama — como, se eu não me debruçara alli? — compre-
hendi que estava possesso, ou coisa analoga em ser, quando não
em nome, e que a consciencia de mim, que eu deveria ter,
se tinha intervallado com o abysmo.

Recebi o annuncio da manhã, a pouca luz fria que dá um
vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de
gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia,
libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço á
velhice incognita, fazia festas á infancia postiça, amparava o
repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada.

Ah, que manhã é esta, que me disperta para a estupidez
da vida, e para a grande ternura d'ella! Quasi que choro,
vendo esclarear-se deante de mim, debaixo de mim, a velha rua
estreita, e quando os taipaes da mercearia da esquina já se
revelam castanho sujo na luz que se extravasa um pouco, o meu
coração tem um allivio de conto de fadas reaes, e começa a
conhecer a segurança de se não sentir.

Que manhã esta magua! E que sombras se afastam? E que
mysterios se deram? Nada: o som do primeiro electrico como um
phosphoro que vae alluminar a escuridão da alma, e os passos al-
tos do meu primeiro transeunte que são a realidade concreta a
dizer-me, com voz de amigo, que não esteja assim.