Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(352)

Ninguem ainda definiu


L. do D.

28-9-1932

Ninguem ainda definiu, com linguagem com que comprehendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tedio. O a que uns chamam tedio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar; ha outros, ainda, que chamam tedio ao cansaço. Mas o tedio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborrecimento, participa d'elles como a agua participa do hydrogenio e oxygenio, de que se compõe. Inclue-os sem a elles se assemelhar.

Se uns dão assim ao tedio um sentido restricto e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende — como quando se chama tedio ao desgosto intimo e espiritual da variedade e da incerteza do mundo. O que faz abrir a bocca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço — nenhuma d'estas coisas é o tedio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ansia desilludida se ergue, e se forma na alma a semente, da qual nasce o mystico ou o santo.

O tedio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tedio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tedio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de hontem e de hoje, mas de amanhã também, (e) da eternidade, se a houver, (e) do nada, se é elle que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que doe na alma quando ella está em tedio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da propria alma que sente o vacuo, que se sente vacuo, e que nelle de si se enoja e se repudia.

O tedio é a sensação physica do chaos, e de que o chaos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cella estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cella grande. Mas o que tem tedio sente-se preso em liberdade fruste numa cella infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cella, e soterral-o. Ao que se desgosta da pequenez do mundo, podem cahir as algemas, e elle fugir; ou doer de as não poder tirar, e elle, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cella infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguem nos ninguem poz.

E é isto que eu sinto ante a belleza placida d'esta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, roseas, como sombras de nuvens, são uma pennugem impalpavel de uma vida alada e longinqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a agua, não mais que levemente tremula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, e ha já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisivel, um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa tambem das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tedio material proprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderavel de angustia e de desolação.

Mas quê? Que ha no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? que ha no céu mais que uma côr que não é d'elle? que ha nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que ha em tudo isto senão eu? Ah, mas o tedio é isso, é só isso. É que em tudo isto — céu, terra, mundo, — o que ha em tudo isto não é senão eu!