Deus - Usa (BNP/E3, 7-39r)

Socégo emfim


L. do D.

Socégo emfim. Tudo quanto foi vestigio e desperdicio
some-se -me da alma como se não fôra nunca. Fico só e calmo.
A hora que passo é como aquella em que me convertesse a
uma religão. Nada porém me attrahe para o alto, ainda que
nada já me attraia para baixo. Sinto-me livre, como se dei-
xasse de exisitir, conservando a con-
sciencia d'isso.

Socégo, sim, socégo. Uma grande calma, suave como uma
inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As paginas
lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de
viver — tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num ha-
lo mal visivel, que cerca qualquer coisa tranquilla
que não sei o que é. O exforço, em que puz, uma ou outra
vez, o esquecimento da alma; o pensamento, em que puz, uma
vez ou outra, o esquecimento da acção — ambos se me volvem
numa especie de ternura sem sentimento, de compaixão frus-
te e vazia.

Não é o dia lento e suave, nublado e brando. Não é a
aragem imperfeita, quasi nada, pouco mais do que o ar que já
se sente. Não é a côr anonyma do céu aqui e alli azul,
frouxamente. Não. Não, porque não sinto. Vejo sem in-
tenção nem remedio. Assisto attento a espectaculo nenhum.
Não sinto alma, mas socego. As coisas externas, que estão
nitidas e paradas, ainda as que se movem, são para mim co-
mo para o Christo seria o mundo, quando, da altura de tudo,
Satan o tentou. São nada, e comprehendo que o Christo se
não tentasse. São nada, e não comprehendo como Satan, ve-
lho de tanta sciencia, julgasse que com isso tentaria.

Corre leve, vida que se não sente, riacho em silencio
mobil sob arvores esquecidas! Corre branda, alma que se
não conhece, murmurio que se não vê para além de grandes
ramos cahidos! Corre inutil, corre sem razão, consciencia
que o não é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras
de folhas, que não se sabe onde vém nem onde vae! Corre,
corre, e deixa-me esquecer!

Vago sopro do que não ousou viver, hausto fruste mudo do
que não pôde sentir, murmurio inutil do que não quiz pensar,
vae lento, vae frouxo, vae em torvelinhos que tens que ter
e em declives que te dão, vae para a sombra ou para a luz,
irmão do mundo; vae para a gloria ou para o abysmo, filho
do Chaos e da Noite, lembrado ainda, em qualquer recanto
teu, de que os Deuses vieram depois, e de que os Deuses pas-
sam tambem.

                                              5-6-1934.