Leitura Crítica 1 - Usa (BNP/E3, 138-69r)

[Carta a Alvaro Pinto, 12 de Novembro de 1914]


Lisboa, 12 de Novembro de 1914

Meu caro Amigo:

Só hoje me foi entregue o seu postal do dia 7. Como o Universo, mudo constantemente, e succede que a correspondencia, muitas vezes, só depois de cinco ou seis dias seguindo a minha pista domiciliária, logra encontrar-me emfim. Com o seu postal aconteceu isto.

Ou eu me expliquei exaggeradamente mal ao Jayme Cortesão, ou elle tirou conclusões excessivas do pouco que eu disse sobre o assumpto. Isso era, de resto, natural que acontecesse, visto o proprio facto de eu sobre o assumpto ter fallado pouco.

Não mandei para ahi livro nenhum. Posto que prompto, nem sequér se encontra passado a limpo o trabalho literario de que se trata. Ha mezes escrevi para ahi, ao meu Amigo, como de costume, perguntando-lhe se a "Renascença" editaria uma plaquette minha, e expliquei que se tratava de um drama n'um acto, de um genero a que eu chamo "estático", e sobre cuja forma e feitio eu disse, para d'elle dar alguma idéa, que se assemelhava, como com effeito se assemelhava, ao escripto Na Floresta do Alheiamento que publiquei n' A Aguia.

Depois d'isto, pedia eu na carta referida que o meu Amigo me dissesse francamente se a "Renascença" podia ou queria editar aquelle trabalho. Fiz esta pergunta porque tomei os seus anteriores offerecimentos sobre editar trabalhos meus como referindo-se a trabalhos de critica ou sociologia, e não a produções propriamente literarias. Eu acrescentei, até, que de modo algum me offenderia com uma recusa. Sei bem a pouca sympathia que o meu trabalho propriamente literario obtem da maioria daquelles meus amigos e conhecidos, cuja orientação de espirito é lusitanista ou saudosista; e, mesmo que não o soubesse por elles m'o dizerem ou sem-querer o deixarem perceber, eu à-priori saberia isso, porque a mera analyse comparada dos estados psychicos que produzem, uns o saudosismo e o lusitanismo, outros obra literaria no genero da minha e da (por exemplo) do Mario de Sá-Carneiro, me dá como radical e inevitavel a incompatibilidade de aquelles para com estes. Não veja o meu caro Amigo aqui a minima sombra de despeito ou, propriamente, desapontamento; o facto, que acima lhe citei, de que eu de antemão posso calcular o effeito do que escrevo sobre este ou aquele individuo, dado que elle me tenha levantado o véu de sobre a sua orientação ou predilecção, não me deixa ter sobre o assumpto illusões que eu tenha que perder.

Foi por estas razões que eu — ao fallar-lhe do meu drama — lhe indiquei expressamente que elle era aparentado com o "Na Floresta do Alheiamento". Pelas mesmas razões conforme já disse, não me espantaria uma recusa, nem me offenderia; e essa recusa, facilitei ao meu Amigo o dar-me quando lhe pedi que me fallasse francamente.

A essa carta eu não recebi resposta, e foi isso que eu estranhei, dado que a hypothese de que a carta se perdera se encontrava affastada pelo facto de que, sendo essa carta em que eu pra ahi indicava que me mudára para a Rua Pascoal de Mello, o numero immediato de A Aguia veio endereçado já para o meu então novo domicilio.

Tomei o seu silencio por uma recusa, e mesmo com esse silencio me não offendi, tomando-o por o possivel effeito de uma prolongada hesitação — apezar de eu ter facilitado uma resposta negativa — em nitidamente me recusar a edição da obra.

Isto, que é muito pouco, é tudo que ha sobre o assumpto. Se lh'o expuz prolixamente, foi para ser explicito e para não dar com a seccura das poucas palavras, a impressão, que seria erronea — de todo erronea — de que eu, ou por isto ou por outra cousa, realmente estava melindrado.

Quanto ao referido trabalho, ou outros trabalhos quaesquer, permitta-me o meu Amigo que lhe peça para collaborar comigo em não fallarmos mais n'isso. Cessei. Compenetrei-me cellularmente da absoluta inutilidade de qualquér esforço e da ridicula incongruencia do acto fundamental de escrever — expor aos outros cousas que ou são opiniões ou sonhos como se as opiniões, quando por acaso alguma acção teem, fizessem mais do que perturbar para fora dos seus saudaveis e naturaes instinctos os pobres cerebros humanos; e como se o destino logico e nobre dos sonhos não fosse ficarem apenas sonhados dentro de nós, sem a ousada imperfeição de serem expressos. Não podendo ter a maravilhosa e natural saúde de não ter opinião nem sonhos, esforcemo-nos ao menos por adquirir a artificial saúde da renuncia.

Desculpe-me ter-lhe tomado tanto tempo, e ter acabado de modo tão indecorosamente literario.

Creia sempre seu mtº amº e grato

                                        Fernando Pessôa

Quanto ao referido trabalho, ou outros traba-
lhos quaesquer, permitta-me o meu Amigo que lhe pe-
ça para collaborar commigo em não fallarmos mais
n'isso. Cessei. Compenetrei-me progressivamente e com uma metaphysica cellular da abso-
luta inutilidade de qualquer esforço e da ridicula
incongruencia do acto fundamental de escrever —
expôr aos outros opiniões ou sonhos, como se as o-
piniões fizessem mais do que, quando por acaso algu-
ma cousa fazem, perturbar as pobres cabeças huma-
nas, e como se o destino logico dos sonhos não fos-
se ficarem apenas sonhados dentro de nós, sem a
ousada imperfeição de serem expressos. O meu Amigo
pode ver esta minha opinião actual a caminho no
Na Floresta do Alheamento, se por acaso o leu.

Fallei ao J. C., quando elle aqui esteve
em varias obras que pensava e varios varios assumptos por-
que me interessava, mas isso deve ser inteiramente
falso. Estou sempre fazendo varias obras em que nem
sequer pensei, e meditando problemas que nem um mo-
mento me preoccupam. Mas de renuncias não se faz
conversa, nem é legitimo incutir aos outros, que
trabalham e produzem, o minimo desalento que seja,
expondo-lhes opiniões depressivas.