Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(461)

Não são as paredes reles do meu quarto vulgar


5-2-1930 Não são as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das ruas intermédias da Baixa usual, tantas vezes por mim percorridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da irreparabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é frequente, da quotidianidade enxovalhante da vida.

São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me institui apócrifo e mendigo.

Há momentos em que cada pormenor do vulgar me interessa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afeição de saber ler tudo claramente. Então vejo — como Vieira disse que Sousa descrevia — o comum com singularidade, e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos formou a idade intelectual da poesia. Mas também há momentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdida na solidão de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.

Sim, a minha virtude íntima de ser frequentemente objectivo e assim me extraviar de pensar-me sofre, como todas as virtudes, e até todos os vícios, decréscimos de afirmação. Então pergunto a mim mesmo como é que me sobrevivo, como é que ouso ter a cobardia de estar aqui, entre esta gente, com esta igualdade certeira com eles, com esta conformação verdadeira com a ilusão de lixo deles todos? Ocorrem-me com um brilho de farol distante todas as soluções com que a imaginação é mulher — o suicídio, a fuga, a renúncia, os grandes gestos da aristocracia da individualidade, o capa e espada das existências sem balcão.

Mas a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o Romeu fictício do meu sangue a janela alta da entrevista literária. Ela obedece ao pai dela; ele obedece ao pai dele. Continua a rixa dos Montecchios e dos Capuletos; cai o pano sobre o que não se deu; e eu recolho a casa — àquele quarto onde é sórdida a dona de casa que não está lá, os filhos que raras vezes vejo, a gente do escritório que é só amanhã que verei — com a gola de um casaco de empregado do comércio erguida sem estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as botas compradas sempre na mesma casa evitando inconscientemente os charcos da chuva fria, e um pouco preocupado, misturadamente, de me esquecer sempre do guarda-chuva e da divinidade da alma.