Tese - Usa Jerónimo Pizarro(350)

O patrão Vasques


L. do D.

O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavelmente, a hypnose do patrão Vasques. Que me é esse homem, salvo o obstaculo occasional de ser dono das minhas horas, num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, falla-me com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preoccupação desconhecida em que não falla bem a alguem. Sim, mas por que me preoccupa? É um symbolo? É uma razão? O que é?

O patrão Vasques. Lembro-me já d'elle no futuro com a saudade que sei que hei de ter então. Estarei socegado numa casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um socego onde não farei a obra que não faço agora, e buscarei, para a continuar a não ter feito, desculpas diversas d'aquellas em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num asylo de mendicidade, feliz da derrota inteira, mixturado com a ralé dos que se julgaram genios e não foram mais que mendigos com sonhos, juncto com a massa anonyma dos que não tiveram poder para vencer nem renuncia larga para vencer do avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão Vasques, o escriptorio da Rua dos Douradores, e a monotonia da vida quotidiana será para mim como a recordação dos amores que me não foram advindos, ou dos triumphos que não haveriam de ser meus.

O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de aqui mesmo — estatura média, atarracado, grosseiro com limites e affeições, franco e astuto, brusco e affavel — chefe, àparte o seu dinheiro, nas mãos cabelludas e lentas, com as veias marcadas como pequenos musculos coloridos, o pescoço cheio mas não gordo, as faces coradas e ao mesmo tempo tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o, vejo os seus gestos de vagar energico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fóra, recebo a perturbação da sua occasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o applauso de uma multidão.

Será, talvez, porque não tenho proximo de mim figura de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas vezes, essa figura commum e até ordinaria se me emmaranha na intelligencia e me distrahe de mim. Creio que ha symbolo. Creio ou quasi creio que algures, em uma vida remota, este homem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do que é hoje.

Ah, comprehendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monotona e necessaria, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Elle é tudo para mim, por fóra, porque a Vida é tudo para mim por fóra.

E, se o escriptorio da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num logar differente, a Arte que allivia da vida sem alliviar de viver, que é tam monotona como a mesma vida, mas só em logar differente. Sim, esta Rua dos Douradores comprehende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução.