Há quanto tempo não escrevo!
Há quanto tempo não escrevo! Passei, em dias, séculos de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre paisagens que não há.
No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-me bem. Se dormisse, não me correria de outro modo. Estagnei, como um lago que não há, entre paisagens desertas.
É frequente o desconhecer-me — o que sucede com frequência aos que se conhecem. Assisto a mim nos vários disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para dentro, a monotonia, todavia tão diferente, daquela casa de província... Ali passei a infância, mas não saberia dizer, se quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia: são vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas monotonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida diferentes por dentro. Não eram duas monotonias, mas duas vidas.
A que propósito relembro? O cansaço. Lembrar é um repouso, porque é não agir. Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca fui, e não há nitidez nem saudade nas minhas memórias da província onde estive como as que moram, tábua a tábua do soalho, oscilar a oscilar de outrora, nas vastas salas onde nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação — a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser, que existir é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E em torno de mim todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens que nunca verei.