Leitura Crítica 2 - Usa (BNP/E3, 3-66r)

O socio capitalista aqui da firma


                                            5/4/1930.
L. do D.

O socio capitalista aqui da firma, sempre doente em
parte incerta, quiz, não sei por que capricho de que in-
tervallo de doença, ter um retrato do conjuncto do
pessoal do escriptorio. E assim, antes de hontem, alinhá-
mos todos, por indicação do photographo alegre, contra a
barreira branca suja que divide, com madeira fragil, o
escriptorio geral do gabinete do patrão Vasques. Ao cen-
tro o mesmo Vasques; nas duas alas, numa distribuição
primeiro definida, depois indefinida, de categorias, as
outras almas humanas que aqui se reunem em corpo todos os dias pa-
ra pequenos fins cujo ultimo intuito só o segredo dos Deu-
ses conhece.

Hoje, quando cheguei ao escriptorio, um pouco tarde,
e, em verdade, esquecido já do acontecimento estático da
photographia duas vezes tirada, encontrei o Moreira, ines-
peradamente matutino, e um dos caixeiros de praça, debru-
çados rebuçadamente sobre umas coisas ennegrecidas, que
reconheci logo, em sobresalto, como as primeiras provas das photographias.
Eram, afinal, duas só de uma, d'aquella que ficára melhor.

Soffri a verdade ao ver-me alli, porque, como é de sup-
por, foi a mim mesmo que primeiro busquei. Nunca tive uma
idéa nobre da minha presença physica, mas nunca a senti tam
nulla como em comparação com as outras caras, tam minhas
conhecidas, naquelle alinhamento de quotidianos. Pareço um
jesuita fruste. A minha cara magra e inexpressiva nem tem
intelligencia, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o
que fôr, que a alce da maré morta das outras caras. Da maré
morta, não. Ha alli rostos verdadeiramente expressivos. O
patrão Vasques está tal qual é — o largo rosto prazenteiro
e duro, o olhar firme, o bigode rigido completando. A ener-
gia, a esperteza, do homem — afinal tam banaes, e tantas ve-
zes repetidas por tantos milhares de homens em todo o mun-
do — são todavia escriptas naquella photograhia como num
passaporte psychologico. Os dois caixeiros viajantes
estão admiraveis; o caixeiro de praça está bem, mas
ficou quasi por traz de um hombro do Moreira. E o Moreira! O meu
chefe Moreira, essencia da monotonia e da continuidade, es-
tá muito mais gente pessoal do que eu! Até o moço — reparo sem
poder reprimir um sentimento que busco suppor que não é in-
veja — tem uma certeza de cara, uma expressão directa
que dista sorrisos homem do meu apagamento nullo de esphynge
de papelaria.

O que quere isto dizer? Que verdade é esta que uma
pellicula não erra? Que certeza é esta que uma lente fria
documenta? Quem sou, para que seja assim? Comtudo...
E o insulto do conjuncto?

— Você ficou muito bem, diz de repente o Moreira.
E depois, virando-se para o caixeiro de praça, "É
mesmo a carinha dele, hein?" E o caixeiro de praça con-
cordou com uma alegria amiga que atirou me escorreu para o lixo.