Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(70)

Reconheço hoje que falhei


L. do D.

Reconheço hoje que falhei; só pasmo, ás vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que /prognosticasse/ um triumpho? Eu não tinha a força cega dos vencedores, ou a visão certa dos loucos... Era lucido e triste como um dia frio.

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As cousas nitidas confortam, e as cousas ao sol confortam. Vêr passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translucido e aereo penetra-se da sufficiencia das cousas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra cousa que uma visão incorporea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.

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Tenho elementos espirituaes de bohemio, d'esses que deixam a vida ir como uma cousa que se escapa das mãos em tal hora ou que o gesto de a obter dorme na mera idéa de fazel-o. Mas não tive a compensação /exterior/ do espirito bohemio — o descuidado facil das emoções immediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um bohemio isolado, o que é um absurdo; ou que um bohemio mystico, o que é uma cousa impossivel.

Certas horas-intervallos que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-hão para sempre como medalhas. N'esses momentos esqueci todos os meus propositos de vida, todas as minhas direcções desejadas. Gosei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, cahindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gosei nunca, talvez, uma hora /indelevel/, isenta de um fundo espiritual de fallencia e de desanimo. Em todas as minhas horas libertas uma dôr dormia, floria vagamente, por detraz dos muros da m[inha] consciencia, em outros quintaes, mas o aroma e a propria cor d'essas flôres tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá d'elles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mysterio confuso do meu sêr, um lado de cá esbatido na minha somnolencia de viver.

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Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. Á roda do meu solar sonhado todas as arvores estavam no outomno. Esta paysagem circular é a corôa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida fôram sonhos, e sonhos de tristeza, e via-me nos lagos d'elles como um Narciso cego, que gosasse o frescôr proximo da agua, sentindo-se debruçado n'elle, por uma visão anterior e nocturna, segredada ás emoções abstractas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em /preferir-se/.

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Os teus colares de perolas fingidas amaram commigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus labios festejavam sobriamente a ironia do seu proprio sorriso. Comprehendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o comprehendesses que o mysterio escripto na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus labios /desistidos/. A nossa Patria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a agua era pellucida de silencios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a agua escolhia, havia segredos que tiveramos quando creanças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estatica d'uma grande acção militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse ás nossas supposições.

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Sei que falhei. Goso a volupia indeterminada da fallencia como quem dá um apreço exhausto a uma febre que o enclausura.

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Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque elles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fôra um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.

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